sábado, 24 de maio de 2025

Não quero surfar nessa onda

Nunca se soube tanto e, paradoxalmente, nunca se pensou tão pouco.

Vivemos atolados numa enchente de dados, memes, opiniões, links, breaking news, vídeos de gente explicando tudo com uma certeza que nem os filósofos mais calejados ousariam ter. É a Infomaré: esse dilúvio de informação que não cessa, que te invade, que te consome sem pedir licença.

E aí entra o velho e cruel Efeito Dunning-Kruger: quanto menos a pessoa sabe, mais confiante ela se torna sobre aquilo que acha que sabe. É a ignorância vestida de arrogância, um ego inflado flutuando numa poça rasa. Enquanto isso, quem realmente se debruça sobre o saber, quem lê, estuda, investiga, muitas vezes só encontra mais perguntas, mais abismos, mais silêncios.

Schopenhauer já avisava: o mundo é vontade cega e representação ilusória. O homem, movido pela ilusão de conhecer, se debate contra a dor de existir, mas agora, com wi-fi.

Troca angústia metafísica por Google, busca sentido em listas de “dez coisas que você precisa saber antes dos 40” e se afoga em tutoriais de como ser feliz em cinco passos.

Só que felicidade, como dizia o velho pessimista alemão, não existe como estado permanente, só alívios momentâneos de uma dor maior que é estar vivo.

Mas tenta explicar isso na internet...

O algoritmo quer certezas, slogans, frases de efeito que cabem num tweet. Ninguém quer lidar com a complexidade do ser, com o trágico da vida, com o vazio essencial.

E assim seguimos, afogados na Infomaré, achando que saber o “fato do dia” ou ter opinião sobre o último escândalo político é o mesmo que ter consciência. Não é. Consciência exige humildade: admitir que não se sabe, que não se domina, que a vida é caos e mistério, que, talvez, nunca escape disso.

Enquanto os ignorantes vociferam certezas, os que realmente pensam mastigam dúvidas e mastigam até sangrar.

Porque, como Schopenhauer diria, viver é sofrer, e saber disso não alivia, mas torna a existência um pouco mais lúcida.

No fim, a Infomaré vai passar.

Vai sobrar quem aprendeu a nadar no caos, e quem nunca percebeu que estava se afogando.

Quer mesmo uma certeza?

Então anota essa: ninguém sabe nada.

E quem sabe disso… 

Já está meio salvo.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Ressaca Virtual

A ressaca virtual não dói na cabeça.

Dói na alma, numa parte meio opaca que a gente finge que não existe enquanto desliza o dedo pela tela.

É uma exaustão que não se explica, porque, tecnicamente, você não fez nada: sentou, olhou, clicou, curtiu, comentou, sumiu.

E, no entanto, amanhece com aquele vazio bocejando dentro do peito.

Não é ressaca de álcool.

É pior.

É a ressaca de ter se ausentado de si mesmo, mais uma vez.

Horas gastas vendo vidas que não são suas, conquistas que não te pertencem, dores que não pode curar e felicidades que não viveu.

E quando a luz fria do celular finalmente apaga, você se vê ali, estendido no sofá, corpo mole, mente saturada, alma entorpecida.

A sensação é de ter comido demais, mas não se sabe exatamente o quê.

Heidegger falaria em inautenticidade, esse modo de ser que não se compromete com o próprio ser.

Nietzsche chamaria de niilismo cotidiano: uma vida sem propósito, anestesiada pela distração.

E você chamaria apenas de: cansaço.

Mas é mais.

É a dor surda de ter se afastado da própria interioridade para se perder numa vitrine infinita.

A ressaca virtual te deixa com a impressão de que perdeu tempo, mas o que perdeu mesmo foi presença.

E quando se percebe isso, vem o susto: quantos dias, meses, anos já foram assim, engolidos em pixels e feeds, enquanto a existência real, palpável, escorria silenciosa pelas frestas?

A sua visão de mundo, rápida, ansiosa, volátil, corresponde à sua visão interior: desconectada, impaciente, incapaz de sustentar o tédio ou a espera.

E assim a ressaca volta, recorrente, como um ciclo: busca-se fuga, encontra-se vazio, tenta-se preencher com mais fuga.

Até quando?

Talvez o antídoto não seja excluir o perfil ou jogar o celular pela janela, mas fazer o que quase ninguém mais faz:

Parar...

Respirar...

Ficar com o desconforto até ele se transformar em presença.

E então, quem sabe, reencontrar na lentidão da vida o que nenhuma notificação vai oferecer:

A chance, remota mas ainda possível, de voltar a si mesmo.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Modus Operandi

 Há um padrão sutil — quase invisível — que rege a maioria das vidas: o desespero em parecer são, quando por dentro tudo grita por socorro. Chamam isso de rotina, de estilo de vida, de metas. Mas é só fuga.

O modus operandi do humano moderno não é viver — é administrar o incômodo. E faz isso com maestria: redes sociais, espiritualidade pop, produtividade tóxica, relações descartáveis, promessas de autocura em três passos. Cada um desses elementos funciona como uma morfina para a alma — suaviza, mas nunca cura.

Fugimos de nós mesmos com a elegância de quem acredita estar evoluindo. Mas não se trata de evolução; é só um esconderijo mais sofisticado. Ninguém quer encarar o vazio que pulsa no peito quando todas as luzes se apagam. Então inventam mantras, inventam trabalho, inventam paixões. Criam personagens mais digeríveis, mais palatáveis ao olhar alheio.

Por trás disso está o pavor do encontro. Do confronto. Porque se olhássemos fundo no espelho da consciência, veríamos não um monstro, mas algo pior: um desconhecido. E esse é o verdadeiro terror — admitir que vivemos décadas sem jamais termos sido de verdade.

A verdade é que autoconhecimento dói. E dói porque exige que a gente desmonte o que construiu para sobreviver. Exige silêncio, exige perda, exige encarar memórias não resolvidas, afetos sufocados, crenças herdadas que nunca questionamos. Mas quem tem tempo para isso numa era que vende a paz como um produto de consumo rápido?

Anestesiamos a realidade porque não suportamos o peso da lucidez. Mas sem lucidez não há liberdade, só distração. E assim seguimos, com passos bonitos e direções vazias.

Modus operandi: viver como se estivesse desperto, enquanto dorme profundamente de si mesmo.