segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Saúde Mental é Dançar entre o Sim e o Não

Saúde mental, no fundo, é uma habilidade moral e prática: a capacidade de responder com clareza, e com consequência, ao binômio mais básico da vida: o sim e o não. Não é um estado passivo de ausência de dor; é o manejo ativo da ambivalência, é saber que cada resposta carrega um preço e que o preço precisa ser pago.

Dizer sim é aceitar uma linha de vida: aceitar tempo, energia, mudanças, expectativas. Dizer não é recusar uma possibilidade, e, ao recusar, também escolher outras. A imaturidade aparece em duas formas óbvias e previsíveis: o “sim” indiscriminado, que dissolve a pessoa em favor do outro; e o “não” absoluto, que ergue muralhas para exilar-se antes mesmo de tentar. Ambos são coberturas para o mesmo medo: o medo de lidar com as consequências de ser humano.

Maturidade psíquica é outra coisa: é reconhecer que nenhuma escolha vem sem custo e ainda assim decidir. É ter critérios próprios, alinhados ao que consideramos valioso, e usá-los como bússola. Não é neurótica obsessão por certeza, é prática de compromisso condicional: eu digo sim a isto hoje, sabendo que posso rever amanhã; eu digo não a isso agora, sabendo que pode haver arrependimento. A coragem não é ausência de dúvida, é agir com dúvida viva.

E aqui entra uma verdade pouco popular: a maior parte da crise mental contemporânea nasce da confusão entre desejo e obrigação. O mercado vende a ilusão de que você deve dizer sim a tudo, oportunidades, conexões, versões de si mesmo, e o discurso moral exige que você diga não às mesmas coisas, criando um gueto emocional. Resultado: quem não aprende a negociar o próprio sim e o próprio não vira presa fácil, ou do consumo, ou do isolamento.

Também é necessário ser franco sobre o contexto. Nem todos os nãos são iguais; nem todos os sins nascem do mesmo lugar. Dizer não diante de quem tem poder sobre você (chefe, parceira, sistema) exige mais do que autocontrole: exige estratégia, rede de apoio, às vezes saída. Saúde mental madura é saber a diferença entre um não ético, que ferra com sua dignidade, e um não prudente, que preserva recursos. É saber que contextos opressores exigem outras habilidades além do autocontrole individual: exigir mudanças políticas, coletivas, estruturais.

Outra faceta: a gestão do sim e do não é um ato de linguagem que molda identidade. Ao dizer sim repetidas vezes a determinadas práticas, você se torna o tipo de pessoa que vive desse modo. Ao negar, você também se define. Portanto, a maturidade passa por reflexividade: observar que aquele seu “sim automático” talvez seja fruto de hábito antigo, medo de abandono, ou de pressões externas. Observar para então escolher, não reagir.

Não me pegue errado: isso não é teoria romântica da decisão. É prática dura. Envolve aceitar perdas, lidar com arrependimentos, consertar quando possível. E, sim, envolve disciplina: prometer para si e manter. A integridade entre palavra e ação é o cimento da sanidade. Pessoas que dizem sim sem cumprir, ou não sem explicar, cultivam erosões internas que viram ansiedade, culpa, ressentimento. O trabalho moral da saúde mental é pequeno e pesado: cumprir o combinado, ajustar o rumo, admitir erro.

Agora uma crítica necessária: a conversa popular sobre saúde mental está contaminada por atalhos. Apps, mantras, “hacks” e terapias de prateleira prometem paz imediata, e, com frequência, anestesiam a responsabilidade. Saúde mental madura não é um produto; é uma gramática de decisões que se aprende errando. Se você busca sempre a cura rápida, continuará fugindo do simples, que é decidir, pagar o custo, viver com o legado da escolha.

Práticas concretas? Não estou oferecendo um catálogo mágico, mas algumas atitudes transformadoras:

Nomear o sentimento antes de responder. Nomear dá distância e escolha.

Transformar grandes decisões em experimentos reversíveis quando possível: tente um “sim” em pequena escala.

Criar rituais de revisão: olhar para compromissos trimestralmente e ajustar.

Construir limites com linguagem clara, não como punição, mas como clareza moral.

Cultivar redes que apoiem o “não” quando ele for necessário, amigos, colegas, profissionais.


Por fim, a dimensão política: quando a cultura exige produtividade incessante, o sim vira exploração e o não vira luxo. Defender a própria sanidade passa a ser também um ato político. Dizer não ao overwork, ao consumo emocional, às demandas que degradam a pessoa é resistência. Saúde mental madura, portanto, tem rosto ético: preserva a capacidade de cuidar de si para poder cuidar do mundo de forma efetiva, não performática.

Resumindo sem rodeios: saúde mental é a arte bruta de gerir compromissos humanos. Não é evitar tragédias, é suportá-las com integridade. É transformar o sim e o não em ferramentas, e não em muletas. É assumir que cada escolha conta e que o esforço de escolher bem é o preço da liberdade. Se você quer viver inteiro, aprende primeiro a dizer e a arcar com o que diz. Isso é maturidade, e é, também, uma forma de coragem.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O silêncio de não ser compreendido

Muita gente julga quem convive bem com a solitude.
Há quem diga, que quem vive sozinho, não quer se relacionar. Pelo contrário, a vontade de ter uma troca real, é gigante. Mas a sensação de muitas das vezes não ser compreendido, é absurda. 

Dizem que você fala demais, que pensa demais, que "viaja na maionese"... Quando, na verdade, ninguém alcança, sua profundidade. Ou não está disposto a isso. 

Por esses dias eu mesmo me diz uma pergunta: 

Por que eu escrevo? 

E a resposta, eu fiquei pensando por mais um tempo. 
Talvez seja justamente por isso. Porque assim, sou capaz de mergulhar nas águas profundas do meu ser, me encontrar, ser quem eu realmente deveria ter sido durante minha vida inteira. 

Por esses dias também eu fiz uma viagem pelo meu passado. E relembrei muitos momentos em que eu, mesmo estando cercado de gente, me sentia só. Ou, depois desses momentos em comunhão, voltava pra casa curtindo apenas o meu momento. 

Não gosto quando romantizam a solidão nomeando-a como solitude, porque quem vive realmente a solitude, sabe o quanto lhe faz bem. 

Ao contrário do que as pessoas pensam, escolher estar sozinho não tem nada de negativo. É um modo de vida, é um aprendizado, é libertação e um encontro com sua própria execencia e espiritualidade. 

As vezes por conveniência, você escolhe estar com alguém e curtir aquele universo, que não é o seu, e acaba se desvairindo. Murchando sua alma. E quando a alma murcha, não é porque o outro te feriu, mas porque você mesmo traiu sua essência ao tentar caber em moldes alheios. Essa é a ferida secreta da maioria: viver no ritmo dos outros até perder o compasso do próprio coração.

A solitude, diferente da solidão, não é vazio, é plenitude. É quando você se senta diante do espelho da alma e finalmente encara os monstros que fugiu a vida inteira. Freud chamaria isso de encarar o inconsciente, Jung falaria do encontro com a Sombra, e na linguagem da espiritualidade é atravessar o deserto da alma. Não importa o nome: o processo é o mesmo, descer até o porão da própria existência para resgatar o que foi enterrado.

E nesse mergulho, você percebe que estar só é um exercício de coragem. Porque o silêncio te confronta, te despe, te mostra o que você realmente é, sem aplausos, sem máscaras. É um lugar onde ou você aprende a dialogar com Deus dentro de si, ou enlouquece com o eco da própria mente.

A sociedade teme quem está em paz com a solitude porque esse ser humano é indomável. Não precisa da validação de ninguém, não se vende por migalhas de afeto, não mendiga presença. Ele ama quando quer amar, e se retira quando precisa preservar sua chama. E isso incomoda, porque revela a escravidão afetiva da maioria.

Solitude é alquimia. É a forja onde a dor se transforma em sabedoria, onde o vazio se revela como espaço fértil, onde a ausência do outro abre espaço para a presença do Eu verdadeiro. É ali que nasce a criatividade, a espiritualidade encarnada, a visão filosófica. É ali que a palavra escrita não é só texto, mas ritual de cura.

E então você entende: escrever, pensar, falar demais não é defeito. É chamado. É pulsar da alma que recusa se acomodar na superfície. É oração sem templo, psicoterapia sem divã, filosofia viva que respira no cotidiano.

Quem ousa entrar nesse território descobre um segredo que poucos suportam: a solitude não é um fardo,  é liberdade. É o sopro que nos reconecta com aquilo que sempre fomos antes do ruído do mundo.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

A Raposa Teumessiana

Na mitologia grega, havia uma raposa que nunca poderia ser capturada.
Chamavam-na Raposa Teumessiana.
Foi enviada como maldição: símbolo daquilo que o homem jamais consegue dominar.

Contra ela, soltaram o Cão de Lélapo, o caçador infalível, que nunca deixava escapar sua presa.

Um paradoxo cruel:
O animal que não pode ser capturado.
O caçador que não pode falhar.
Zeus precisou intervir, petrificando os dois.
Porque certos impasses não têm solução, apenas destino.

Dentro da psique, essa raposa continua viva.
É o lado de nós que escapa sempre,
o trauma que resiste à cura,
o desejo que nunca se satisfaz,
a pergunta que não tem resposta.

Todo adulto carrega sua Raposa Teumessiana.
E a armadilha está em acreditar que ela pode ser capturada.
O verdadeiro salto de consciência não é caçá-la…
mas conviver com o eterno inatingível que nos habita.